sábado, 28 de março de 2015

AS COXAS - o nome descoberto

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Comentário sobre relato bíblico:

 

 "... ficando ele só; e lutava com ele um homem, até ao romper do dia. Vendo este que não podia com ele, tocou-lhe na articulação da coxa; deslocou-se a junta da coxa de Jacó, na luta com o homem.

Disse este: Deixa-me ir, pois já rompeu o dia. Respondeu Jacó: Não te deixarei ir se me não abençoares."  Gênesis 32:24, 25

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As coxas: o nome descoberto

 

Evaristo Eduardo de Miranda

 

No texto bíblico, as coxas representam um dos lugares mais significativos das transformações interiores do homem que, nas trevas, está em luta consigo mesmo. O humano pode sair de seu infantilismo espiritual rastejante e de sua inconsciência. E o faz mediante tropeços que o levam a mancar. Caminhar mancando é um sinal de estar ciente de sua natureza incompleta, das dimensões interiores ainda não esposadas.

As coxas representam a possibilidade de tomada de consciência da fraqueza de nossa força e da força de nossa fraqueza. A expressão em português "se mancar" o homem capacita-se, convence-se  de que está sendo inoportuno, inconveniente ou com etendo erro ou engano. A falha ou esquecimento com relação a algum compromisso também é tratada como "dar uma mancada".

A coxa é a parte do membro  inferior do homem que vai desde as virilhas  até o joelho, e cujo esqueleto é o femur. A coxa é naturalmenrte associada com o quadril (cadril - cadeiril, cadeira), onde se situa a articulação de fêmur com ilíaco. é um lugar onde se unem força e erotismo. "Os contornos de tuas ancas são como, no  anéis, obra de mão de artista" diz o amado a sua amada, no Cântico dos Cânticos (Ct 7,2). Se na tradição cabalística os pés correspondem ao feto no ventre da mãe, os joelhos à criança em seu nascimento, com todo o seu poder vital e sua força emergente, as coxas evocam a adolescência e as passagens iniciáticas do amadurecimento.

No texto bíblico, as coxas e os quadris - onde se ata o cinto1, carrega-se a espada 2  atam-se as vestes que cobrem a nudez 3 - falam do Homem  de espírito em conflito com o Homem animal. Jacó é abençoado no dia em que é atingido e ferido por Deus no músculo 4 da coxa, bem próximo da genitália, e fica manco ( Gn 32, 25-26).

Como Jacó, nós também somos abençoados no dia em que tomamos consciência de nossa condição de coxos, de imperfeitos, de não-realizados. Como diz o profeta: "Desde que me vejo como sou, bato no quadril" (Jr 31, 19). Num dos epizódios mais significativos da Antiga Aliança, Jacó tem, no final dessa noite de luta com seu outro, o nome mudado. Ele descobre pela luta seu verdadeiro nome, Yisrael.

 

Qual o contexto dessa luta?

 

JACÓ_ANJO_COXA

 

Na plenitude  da dinâmica de TER, Jacó havia obtido de seu irmão Esaú o direito de primogenitura em troca de um prato de lentilhas ruivas e, por meio de uma série de ardis, a bênção sacramental de seu pai Isaac.  Esaú  promete matar Jacó após a morte próxima de seu pai (Gn 27,41). Rebeca, sua mãe, aconselha Jacó a fugir para a casa de seu tio Laban. Ele deixa seu irmão e seus pais e parte somente com seu bastão.

Durante a viagem, entre Beer-Sheba, onde vivia, e as terras de Harran, Jacó terá a visão da escada cujo topo atingia o céu. Nas terras do tio, Jacó casará com suas duas filhas, Léa e Raquel, e o servirá por sete anos. Entrará em conflito com Laban e seus filhos, viverá um complexo acerto de contas e finalmente retornará ao encontro d de Esaú.

Temeroso, ele (Jacó) se prepara para o reencontro com Esaú. A força de Esaú vai contrapor-se à força de Jacó. Esaú não fora capaz de deixar pai e mãe, de abandonar estas muletas, e vivia no labirinto parental. Um pouco como o irmão mais velho do filho pródigo na parábola de Jesus (Lc 15, 11-32).

Ao caminhar para si, Jacó constroi uma força ascensional para opor-se a Esaú. Expede mensageiros, toma preocupações, envia presentes ao acampamento do irmão e pede a proteção do Senhor: "Eu peço, salva-me da mão de meu irmão, da mão de Esaú, pois tenho medo dele" (Gn 32,12). Chegada a noite, Jacó passa o rio Yaboqco suas duas mulheres, seus dois  servos,  seus onze filhos e tudo o que lhe pertencia. Faz essa passagem duas vezes. Retorna e fica só. Um homem luta com ele até a aurora.

Em Jacó, o Homem em túnica de pele deixa a suas muletas parentais e torna-se Homem consciente, desidentifica-se do irmão e adquire uma outra força. Essa nova força começa a ser adquirida no campo energético do feminino. O modo de conhecimento do feminino é diferente do masculino e representa uma inspiração à qual o espírito masculino raramente tem acesso.

Ele descobre o feminino em primeiro lugar da forma mais elementar, ao desposar sucessivamente as duas filhas de Laban. Depois, a partir dessa experiência é que será capaz de assumir e esposar (sponsa 5 ), as dimensões femininas em seu ser, ao tornar-se responsável. Jacó adquire bens materiais e espirituais por seu trabalho exterior e interior. Por sete anos, um ciclo cósmico, um tempo de aperfeiçoamento, ele vive nessa dimensão "lunar", feminina. Laban em hebraico significa branco, mas também um dos nomes do astro da noite, a Lua.   

Deus diz a Jacó: "Retorna à terra de teus pais, a teu nascimento, Estou contigo" (Gn 31,3). Nesse retorno às origens, Jacó, Homem consciente e responsável, prepara-se para encontrar-se com o outro-ele  mesmo, seu irmão em túnica de pele.  Jacó prepare-se para esposar uma dimensão ainda mais difícil de si mesmo.  Jacó teme. Tenta ardís, como em outras ocasiões de sua vida. Seu irmão, indiferente, marcha em sua direção com quatrocentos homens. Isso exige de Jacó morrer para seus medos. Exige uma nova estatura, capaz de restituí-lo com relação a essa redutável dimensão do irmão gêmeo. Ele prepara-se para essa passagem.

Diante do rio Yaboq, de instigante toponímia, Jacó fará durante a noite, duas vezes a passagem desse vau com seus bens e familiares. No texto, a palavra hebraica Ever, o nome dos hebreus, Homens de passagem, é repetida duas vezes. ou seja, Jacó realiza a plenitude de seu nome, tanto como hebreu, como no jogo homônimo de palavras com o rio Yaboq, que também mimitiza o verbo hebraico lutar, yeavoq,   cuja raiz significa abraçar, apertar e pulverizar.

"Às trevas da criatura responde a noite da Transcedência" 6, nas palavras do místico S. João da Cruz (1542-1591). Anoiteceu. É a noite escura, a noite da alma. "Um homem luta com ele até elevar-se a aurora" (Gn 32,25). A tradição oral viu nesse homem um anjo, um mensageiro de Deus.  

Para Rashi, citado, "nossos sábios, de abençoada memória", era o anjo de Esaú. Pelo verbo hebraico, esse homem o abraça, até reduzi-lo a pó. Menahen ben Saruk, citado por Rashi, traduz essa passagem como "e empoeirou-se um homem".  Em sua noite escura, Jacó - que para os cristãos prefigura Jesus - dirá: "A noite penetra meus ossos e me estraçalha, meus nervos sofrem sem interrupção" (Jó 30,17). Rashi entende essa passagem de Jacó como "amarrado a ele, a seus laços. Porque esse é o meio de duas (pessoas) que se esforçam para derrubar uma à outra: uma abraça e enlaça (a outra) com seus braços" 7.

O texto hebraico diz Ish, um homem, no sentido de "esposo". Jacó entra no casamento místico consigo mesmo, no mais profundo e alto nível enegético, a fim de poder encontrar e "desposar" seu irmão. Esaú, homem vermelho, animal, grossseiro, não realizado, mas pelo qual passa a encarnação de Jacó.  Trata-se da dança do homem consigo mesmo e, enquanto vida, de sua dança com Deus 8. Uma dança noturna e dolorosa que deixa marcas. Nada podendo, o homem toca na palma da coxa de Jacó e ela se desloca. Quando o sol brilha, Jacó "coxeava da coxa" (Gn 32,32). No texto bíblico, vê-se o gesto de bater na coxa como gesto de dor (Ez 21, 17).

Ele fica coxo. Ele sempre fora coxo, como visto na simbologia dos pés, mas agora ele toma consciência de que ainda não esposou a totalidade de seu ser e caminha para sua verticalização.  Atingidos na coxa, estamos diante de um sintoma revelador: para atingir sua verticalização,  o Homem deve desposar todo o potencial de energia selada em seu feminino. Jacó, pressentindo a identidade do homem Ish, pede sua benção. 

Quando indaga o nome, o homem responde:  - Porque me perguntas?  Em realidade a resposta já tinha sido dada. Jacó havia combatido com Yisrael para se tornar Yisrael. "Teu nome não será mais dito Jacó mas Yisrael - lutador de El: sim, lutaste (saro) com Deus (EL) e com os homens (Ish), e prevaleceste" (Gn 32,29). Revelação do nome e de toda energia.

É no nível do lutar que a transformação foi feita de Jacó para Yisrael, reduzido a pó até atingir seu princípio (príncipe= sar, em hebraico).O homem atinge sua divinificação quando encontra a fonte ou o princípio pela qual ele integra-se a totalidade do cosmos. Todos nossos Nomes, germes da Vida, nos quais Deus soprou em Adâm - ou melhor  ainda soprou Adâm (Gn 2,7) - estão contidos no seu santo Nome, IHWH. 

Revestido da força divina, Jacó-Yisrael reencontra seu irmão Esaú. Fora de uma relação de forças. A experiência de Jacó junto a Laban  é homóloga à dos homens  junto ao Egito. O povo de Yisrael, nascido de Jacó, viverá a experiência de passagem, da luta consigo mesmo e da integração mística de suas dimensões masculinas e femininas.   Da criança Jacó nasceu um homem Yisrael. Com   Jacó devemos tomar consciência que, longe de sermos seres alados, somos todos coxos.

No interior da coxa de Júpiter (Zeus), Dionísio havia realizado uma segunda gestação, como numa árvore oca. Nas pessoas idosas, a ruptura espontânea da cabeça do fêmur 9 deveria ser uma última lembrança de nossa natureza coxa e da eminência do final desta segunda gestação.

Acidentes dessa natureza evocam a proximidade da passagem, da páscoa individual, a cruzar da Porta dos homens de TER para SER, para ver realizada a profecia do livro do Apocalipse: "Sobre seu manto e sua coxa ele traz inscrito um nome: Rei dos reis e Senhor dos Senhores" (Ap 19,16).  

 

1. " A justiça será o cinto de seus quadris e a fidelidade, o cinturão de seus rins." (Is 11,8)

2. "...cada um sua espada sobre os quadris para enfrentar o terror da noite" (Ct 3,8)

3. "Confecciona-lhes calções de linho para cobrir a nudez; irão dos rins às coxas" (Ex 28,42)

4. O corpo humano tem cerca de 640 músculos diferentes, todos voltados para empurrar e contrair. Os músculos da coxa cumprem também um papel na sustentação do esqueleto humano.

5. Esposa. Presente na palavra re-sponsa-bilidade.

6. São João da Cruz, Obras completas. Vozes, Petrópolis 1991.

7. Chumash. Bereshit. Bíblia. Com comentários de Rashi. Trejger Editores, São Paulo 1993.

8. Annick de Souzenelle. Le symbolisme du corps human, op.cit.

9. O fêmur é o osso único da coxa, o maior do corpo humano e mais resistente do que o concreto. É provável que a maioria dos humanos, ou pelo menos boa parte da humanidade, viva em casas menos resistentes do que seus fêmures! A estrutura interna e externa do fêmur, na forma de articulação na bacia, com a cabeça deslocad com relação ao eixo principal, serviram de modelos para a construção da torre Eifel em Paris.

 

Fonte: Corpo - Território sagrado de Evaristo Eduardo de Miranda, Edições Loyola, 6ª edição, 2010.

Autor: Evaristo Eduardo de Miranda é mestre e doutor em ecologia pela Universidade de Montpellier, França, profundo conhecedor da teologia espiritual, agente da pastoral da esperança. De sua aproximação às escrituras e ao hebraico nasceu este livro.

Nota: Este blog tem publicado, além de artigos de Ciência Cristã, escritos de pessoas situadas em diferentes religiões, que ao desafiarem sua inteligência, sem medo de ousar, procuram buscar a verdadeira essência dos ensinamentos dos textos da Bíblia. Apontando com suas produções, de algum modo, para aspectos ou características da teologia da Ciência Cristã.

Desta maneira, mantendo diálogo inter-religioso, participamos da elevação do pensamento do leitor a consciência de princípios universais, básicos para o cristianismo, importantes para o progresso da humanidade.

"A familiaridade com os textos originais e a disposição de abandonar as crenças humanas (estabelecidas por hierarquias e instigadas às vezes pelas piores paixões dos homens), abrem o caminho para que a Ciência Cristã seja compreendida, e fazem da Bíblia o mapa náutico da vida, no qual estão assinaladas as boias e as correntezas curativas da Verdade." Mary Baker Eddy

 

ATENÇÃO:   As coxas: o nome descoberto   não representa necessariamente o pensamento do Movimento da Ciência Cristã (A Igreja Mãe em Boston ou qualquer de suas filiais, sociedades ou grupos informais de estudos, existentes em diferentes países do mundo), foi publicado para refletirmos sobre a importância do estudo da Bíblia no contexto histórico, nas dimensões política, social, cultural e econômica em que seus relatos foram escritos. Conforme recentes descobertas sobre fatos nela registrados e a opinião de estudiosos do texto bíblico, como objetivo de alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.

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